16.2.06

A deambulação que odiava Inócuo

Dizia Garcia Marquez que a chave de uma boa estória é sempre a de uma boa imagem. A imagem petulante de um velho recostado num banco de jardim, com a serenidade da vida toda pelas costas é bom ponto de partida para uma fabulação imensa de quantas mulheres o abandonaram e de quantas (e como) as abandonou ele. A mão poisada sobre uma das suas pernas é a memória ainda viva de como antes a poisava na perna de outras e o chapéu fundo com abas é a revelação subtil de que o tempo já não é o seu nem delas. O velho de sorriso descansado - já perdeu o medo ao tempo - sabe que não sabe ficar calado, sabe melhor que ninguém que a sua imagem fala por si e que a sua estória está toda ali, chapadaescancarada, para quem a quiser escrever por ele.
Uma boa imagem vale mil palavras, muitas palavras; talvez mesmo um texto inteiro ou um livro para quem tenha nas palavras o processo de contar os sonhos, chorar desventuras ou vociferar vontades. Contudo, a breve estória das imagens postas em palavras não é coisa do fácil alcance. Há que, antes de saber pôr as palavras umas com as outras da forma correcta, saber ver uma história para lá de uma imagem, saber ver uma imagem para além das coisas da vista; saber abrir bem os olhos - ou semicerrá-los (também bem) - e ver o que está, onde antes não estava nada Ocorre-me semelhante deambulação porque vejo na cidade da gentes, a vista curva e turva. No metro das minhas paixões, a vista de todos segue descarreira da vista dos outréns. Cruzar olhares é intromissão de propriedade e fixá-los seria certamente violação consumada. Na cidade da gentes, a individualidade marca o passo e as formigas diligentes cruzam-se a todos os dias não apenas sem se cumprimentarem como, além do mais, evitando confrontarem o simples olhar. ¿Quantos amores por acontecer, quantas mortes por ditar, quantas paixões por gritar, quantas palavras por trocar, quantos romances por escrever, quantos? E segue a gente. Pouca-terra-pouca-terra. Deixando por ler a cada dia o romance desse dia, deixando a cada dia por acontecer, os romances da vida toda.
A chave de uma boa estória é sempre a de uma boa imagem. ..

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gosto de ti. E de como escreves o que eu sinto e não digo...

2/17/2006 3:02 da tarde  

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