14.10.05

VICENTE, Manuel

'Havia uma maneira parecida com aquela a que tinhamos sempre aspirado; havia uma maneira que nos dizia poder ser estudada a arquitectura sem cronologias obedientes, lida na banalidade comercial, nos quais sublimes ou nos mais obscuros exemplos do passado ou nas experiências mais fortes dos arquitectos contemporâneos; havia arquitectura nas descrições dos poetas, nas memórias da nossa infância, nas memórias da infância dos outros; havia analogias(de construção, de montagem, de síntese) com os modos de fazer cinema, ópera ou pintura. Não havia, afinal, motivos de culpabilização para o nosso desejo de forma ou de prazer perante as formas, na nossa vontade de plenitudes idênticas àquelas que nos incendiavam quando as percebiamos dentro de um romance, de uma escultura ou de uma peça para violoncelo.
(...)
O prazer de viajar e discorrer; o prazer de usar a noite para falar, no carro, no istmo, na rua, em casa; o prazer de chegar a ser contraditório para nada provar, apenas a relatividade de tudo; o prazer da radicalidade das afirmações; o prazer do que se fez, se empenhado; o prazer de construir (a partir de quase nada) um intrincado universo de relações, composições, hipóteses; o prazer de usar a memória, o passado, o já vivido, livremente, criativamente, ao serviço de outros problemas ou de recorrentes impasses humanos; o prazer de citar sem rigor (“se non é vero é ben trovato”); o prazer de especular, de criticar sem concessões, de celebrar a vida em todas as suas manifestações por mais pequenas ou anónimas que parecessem; o prazer da abordagem aos problemas por lados insuspeitados, não comuns; o abrir dos novelos com a exactidão do sítio mais difícil mas também do mais potenciador de outras soluções; o prazer, sobretudo, de gostar da arquitectura, de gostar da beleza, de gostar de quase toda a produção humana, porque é construção humana e construção de sentido, sem ordenação ou preconceito.
(...)
Aprendemos a lição de regrar o universo a partir da vontade de destruir as regras banalizadas; de o assemelhar a um organismo vivo, certo para consigo e para com os outros organismos sendo diferente, aprendemos a testar permanentemente a correspondência, a rima, o fraseado, a subverter o fraseado e a rima e a caminhar, às vezes, na fronteira absoluta da leis desconhecidas; aprendemos a interrogar mentalmente programas e a extrair deles o significado mais escondido que é preciso ir buscar muito ao fundo desse elenco superficial.
(...)
A ele recorro sempre, no pânico da vida, e acabamos a rir-nos. Cheios de arquitecturas apaixonadamente estúpidas na recusa comum da facilidade, vamos construindo pequenos troços cúmplices mesmo quando nos criticamos.'

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

amo esse senhor!

10/16/2005 11:19 da manhã  

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