10.10.05

Cidade Adiada

Vou a Portugal. Pago um batelão de massa. Na época das companhias low-cost, o destino-Portugal é seguramente o pior na relação preço/quilómetros, o cu da Europa, o último refúgio de isolamento europeu.
Vou. Eleições na cabeça, um projecto - Carrilho que por alturas de Junho me fazia sonhar num projecto de cidade inédito. Havia os filósofos, os pensadores, jornalistas, artistas, tecnocratas, arquitectos, urbanistas, um grupo de cidadãos de inequívoca qualidade predispostos, como eu, a acreditar no Homem esquecendo-lhe a soberba.
Depois, uns e outros se foram esquivando. Uns na primeira página de jornais outros de mansinho.
Ao dito Homem, lhe faltava carácter, dizia-se.
Eu não quis querer nas críticas lidas; mais me cheirava, confesso, à cobardia de quem não tendo já a vitória assegurada, não se quer, por interesse próprio associar, a uma possível derrota.
Em Portugal, 5ª feira à noite, abro o precedente de dizer que não aos amigos, ao álccol e às mini-saias e quedo-me por casa. A razão: o ultimo debate - moderado, não vão os homens esbofetear-se - dos candidatos à mais alta figura autárquica em Portugal.
Não queria querer: o Sá aos disparates (entende-se que nele o voto é para vereador e até se dá o disconto), o Carmona calado, calado, parecia um espectador (e nas poucas palavrinhas é impossível disfarçar a tolerância que se sente com a inocuidade do pobre coitado), o Ruben - coitado também -, devia ter ficado calado também, que passar hora e meia a defender, e a defender bem, o legado da coligação PS-CDU de outrora, é dizer muito pouco do futuro, e poupar muito o Carrilho que quer e não ser do PS. A Zezinha também ficou calada, que o tunel não lhe diz nada, o trânsito não é problema e os transportes públicos não são o seu pelouro e quando se fala da santa habitação - sim, a Zezinha até já foi a Santa Casa - tem tanto medo de ficar calada que pede para não a mandarem calar, antes mesmo que alguém se lembre de o fazer.
Pior, pior, só mesmo o Manel Maria. Entende-se que o Homem vive no mundo dos Deuses, dos Platões e dos Sócrates ain da que prefira sempre o Deleuze, mas não se entende como pretende governar uma Câmara nas nuvens. Entende-se que o forte do Homem são os que lhe estão (estavam...) por detrás, mas não se entende então como concentrar tanto a atenção no seu Ego. Entende-se a supremacia do Homem sobre o outro da inocuidade, mas não se entende a desfasatez de o ignorar. Entende-se que isto de alvitrar aos homens terrenos as suas vontades não seja digno do Homem mas não se entende que do seu púlpito não nos chegue - a nós mortais - sequer uma gota de informação ou novidade.
Desde esse momento, o susto; o baixar de braços, o suspiro profundo pela confirmação do meu pior receio: a cidade inevitavelmente se adiaria por mais 4 anos. Mais 4 anos de deriva de projecto, 4 anos nas mãos da especulação imobiliária, 4 anos de decisões casuísticas, 4 anos de caciquismo, 4 anos para livremente devorar as parcelas sobrantes de qualidade do território, 4 anos de medicina curativa e não preventiva.
Pensei então no absurdo. Depois de 250 euros investidos num voto, pensei em não votar.
Pensei no Saramago, pensei no voto em branco, pensei em fazer a cruzinha com burriés, com merda de pássaro, ou mesmo com a minha, pensei em bombas e nos narizes de palhaço de outros arbítrios, pensei em votar em quem não era candidato, pensei em votar em mim, pensei em votar no Rio de Lisboa, na Luz de Lisboa, nas janelas de Lisboa, nos miradouros de Lisboa ou no Marquês de Pombal.
Pensei em votar em Lisboa, não querendo acreditar que Lisboa afinal não era candidata.
Olhos no chão. Bom dia aos contínuos de outras datas, secção de voto IX. Cidadão André Albuquerque, BI nº 11710335, eleitor nº 23062, 3 papéis na mão, faça o favor de votar.
Olho para os papéis e não vejo o Su Doku - eu antes queria resolver um Su Doku -, coço a cabeça à procura de uma saída com classe para o imbróglio. Uma solução genial, legal e honrosa para tamanho paradoxo. Penso na minha mãe que horas antes havia encontrado a sua:
- eu não voto. Pela primeira vez depois do 25 de Abril, não voto - Ponto final, presumi eu. E não constestei.
Hesito uma, hesito duas, hesito três, voto na assembleia, na junta e na câmara voto em todos que é como quem diz que não voto em ninguém. Voto no AF, que no seu post de hoje sustenta que o voto teria um resultado mais correcto e uma afluência às urnas muito maior se cada eleitor dispusesse de um voto contra: o menos votado seria o eleito. Dessa forma - segundo ele, e eu voto nele - eliminariamos aqueles candidatos reconhecidamente corruptos, sistematicamente eleitos pela inércia do voto partidário.
O voto contra.
O Saramago devia escrever outro ensaio.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Alguns reality shows utilizam esse mecanismo do voto contra - quem expulsam da casa, quem acreditam não merecer lá estar. E ainda pagam para votar. Outros utilizam o mecanismo do voto de salvação - salvar um dos condenados à expulsão. E continuam a pagar para votar. E ainda que os temas dos ditos programas variem, os protagonistas são os mesmos. Porque a realidade é limitada, assim como os seus protagonistas. E não há período de nojo, para que os equilíbrios se restabeleçam. Vive-se simplesmente enojado.

10/10/2005 5:39 da tarde  

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